Eu tinha 16 anos e acabara de mudar para o Recife. Na cabeça muita vontade de virar um grande violinista. Naquela época era ainda mais difícil que agora. O Conservatório de Pernambuco tinha poucos professores, a estrutura era pequena. Eu vinha de Belo Horizonte, onde a vida musical era profícua, estranhei muito. Quem vivia de música clássica no Nordeste ganhava pouco e contava com poucas orquestras para trabalhar (a fantástica Orquestra Armorial de Cussy de Almeida já não existia mais). Estudar música erudita então, era mais complicado ainda.
Também não havia computador e internet. O que isto significava para um músico? Pouquíssimo acesso à informação. Nada de ver os grandes ícones tocando no Youtube. Nada de aulas via Skype. Precisava de um Método ou a Partitura de um determinado concerto? Nada de Amazon: era preciso ir até a biblioteca do Conservatório ou da UFPE, procurar, procurar, procurar e xerocar caso encontrasse. Ou então pedir a algum colega para copiar a cópia dele. Queria ouvir o concerto de Sibelius ou um quarteto de Ravel? Nada de Itunes. Havia que se contentar com o insólito acervo das lojas da cidade, sempre focadas em frevo, forró e Roberto Carlos. Por isto a gente guardava os discos de música erudita como verdadeiras preciosidades. E também copiava em fita cassete as raridades dos colegas.
Eu conhecia cada um dos discos da minha pequena coleção. Ficavam num lugar especial perto da vitrola. Guardados de pé – para não empenar – e em ordem alfabética pelo nome do compositor. O primeiro era de Brahms – Concerto Duplo para Violino, Violoncelo e Orquestra. Na capa, um Antônio Meneses bem jovem e cabeludo, Karajan maracujá-de-gaveta e ela. Sorrindo bochechuda, pouco atraente, cabelo meio desgrenhado e roupa bem simples. Era jovem e já tocava muito. Anne-Sophie Mutter foi ídolo e ícone da minha adolescência no Recife. Seu LP de estreia – o Concerto em Mi menor de Mendelssohn, também com Karajan – quase furou de tanto tocar lá em casa.
Mais tarde fui descobrindo outras gravações e versões melhores das coisas que Anne-Sophie Mutter gravara quando jovem. Meus violinistas preferidos também foram mudando: Mischa Elmann, Leonid Kogan, Jascha Heifetz, Salvatore Accardo, Gidon Kremer, Schlomo Mintz, Isaac Stern, Itzhak Perlman… até que o tempo e o ouvido me moldaram a opinião de que o melhor de todos é, sem dúvida, David Oistrakh. Há quem discorde. Questão de gosto.
Passaram-se quase 30 anos desde o longínquo Recife e Anne-Sophie Mutter me aparece em Shanghai com os seus “Mutter Virtuosi”. Assim que soube, comprei os ingressos, quase esgotados. Torci para que não surgisse nenhum compromisso ou viagem de última hora. Na 4a feira passada fui ansioso ao concerto. Anne-Sophie está uma cinquentona bonita. Classuda: é esguia, elegante, bem vestida, muito simpática. Uma estrela bem diferente da adolescente que tocou com Karajan. A técnica continua impecável e a sonoridade, agora madura, que consegue com seu Stradivarius me impressionou muito. (aliás, nesta noite o grupo tocava com: 2 violinos Stradivari, 1 viola Fendt-1820, 1 violino Baptista Rogeri-1701, 1 violino Matteo Goffriller-1700, 1 cello Jean Baptiste Vuillaume e 1 violino Gioffredo Cappa-c.1700 – quem gosta de luteria sabe do que estou falando).
Esperava mais em termos de repertório. A primeira peça “Ringtone Variations”, para Violino e Contra-baixo, foi encomendada ao compositor Sebastian Currier. Dificílima, técnica e musicalmente. Depois veio o Octeto de Mendelssohn, com Anne-Sophie fazendo a parte do primeiro violino. Foi uma interpretação correta, dinâmicas bem feitas, interessante, gostoso de ouvir. A segunda parte do programa decepcionou. O grupo tocou as Quatro Estações e para compensar a “facilidade” da obra, Anne-Sophie acelerou praticamente todos os andamentos. E levou sua interpretação de forma exageradamente romântica, melosa até. De qualquer forma, aplaudi de pé e pedi bis. Ídolo é ídolo…
Ao final, eu e mais 500 chineses entramos na fila dos autógrafos. Anne-Sophie Mutter, cansada porém sorridente e solícita atendeu a todos rapidamente. E eu, bobão, ainda consegui tirar uma foto com ela, que não acho a melhor, mas ocupa o posto vitalício de “minha-primeira-violinista-preferida”.
P.S.: Gabi, morrendo de ciúmes, me acompanhou na fila de autógrafos e tirou fotos. Agüentou firme!